Um instigante arco poético interliga a série inédita de desenhos Paixão e Glória a imagens que, desde 1981, reverberam em gravuras, pinturas, fotografias, vídeos e performances de Monica Barki. São observações agudas sobre o que une os casais – o modo como parceiros desiguais se atraem e, por vezes, se enfrentam – lançadas em um território ambivalente entre o factual e o imaginário.
Mulheres em diferentes estados emocionais – distantes, mascaradas, despidas ou triunfantes –, são protagonistas destes encontros. Acordos, modos de dominação e entrega mantidos na intimidade dos casais são iluminados. Certa intuição analítica leva a um mapeamento da opressão, contra a qual Barki arma inesperados revides e certeiras revoluções.
Em Paixão e Glória, ao investigar o Shibari, prática de amarração corporal herdeira da tradição medieval japonesa, uma tênue fronteira entre o desejo e o sagrado é explorada. O sublime é revelado no limiar do sofrimento em relações de confiança e entrega de inquietante caráter erótico.
De outro modo, em duas versões de Enfim Noivos…, que jogam com o desejo de não ver, o enlace matrimonial é abordado como dissimulação do desejo. A gravura de 1981, é exibida sob um véu imposto por proibição judicial, lado a lado com a fotografia recente em que a artista e seu companheiro reencenam a pose encoberta. Ainda assim, distraidamente, negamos a pulsão do corpo, discretamente visível nos dois trabalhos. Cada qual, em tempo e contexto distintos, explicita o vínculo erótico contido sob a indumentária festiva dos tradicionais registros matrimoniais.
Barki se aproxima do complexo equilíbrio de cada encontro, cada união – sejam aquelas socialmente aceitas, celebradas nos moldes da tradição religiosa, ou as provisórias e marginais. Ao conquistar agudo equilíbrio entre sedução e humor crítico, dialoga indiretamente com artistas brasileiras de diferentes gerações, como Márcia X (Fabrica Falus, Desenhando com terços) e Lygia Pape (Eat me – A gula ou a luxúria, Objetos de Sedução). Fortalece, com vigor, o extenso e necessário debate sobre as lutas, inquietações e desejos das mulheres.
Ao retomar imagens da internet, registros fotográficos, vídeos, performances e a própria produção, Barki abre um amplo campo de investigação que retorna e leva ao limite sua própria condição feminina. Desafia os estereótipos em torno da sexualidade, da família e dos ritos sociais, a partir de seu próprio lugar de fala. Nesta sinuosa trilha temporal, marcada por apropriações intempestivas, corta os véus do jogo social e segue os contraditórios rastros da síndrome da paixão.
Rio de Janeiro, novembro de 2019
Luiza Interlenghi
Para a exposição “Síndrome da Paixão” de Monica Barki
Uma bagagem não representa um fim em si mesmo; ela é trazida para que algo novo se inicie: uma jornada, um novo ciclo, uma nova vida. Resumo de um patrimônio, síntese do necessário, esboço de identidades, bagagens sublinham tanto nossa materialidade e efemeridade, como o desejo de ir além desta condição. O suspense vivido numa baggage claim area é metáfora da alienante urgência do cotidiano e da importância da esperança. Nesta exposição, cada colagem é uma peça de bagagem, pessoal e universal. Os fragmentos permanecem íntegros, resultando num todo que transcende sua soma. Filha das migrações, Monica Barki equipa-se para o futuro reconfigurando o passado.
Rio de Janeiro, agosto de 2018
Frederico Dalton
Para a exposição “Bagagem” Monica Barki
“Declarar” é anunciar, revelar, tornar claro… Sobre o quê lança luz o título desta exposição? Antes de tudo, ele afirma o amor da artista pela arte como emissária de verdades pessoais. O trabalho fala pela artista. Aqui não existe “arte pela arte”: arte tem uma função. E que isso fique bem claro, dito de uma forma que nos remeta às declarações de amor. Em português, a forma reflexiva do verbo declarar é geralmente usada para afirmar amor, este sentimento, aliás, tão frequentemente acusado de se nutrir de autoenganos. Em “Eu me declaro” a artista proclama sua fascinação pela magia e pela força das imagens, às quais delega o papel de falar por ela.
Declarar é também esclarecer. E a história da cultura é feita de uma série de “esclarecimentos” que, ainda que nos tenham deixado menos ignorantes, também deflagaram crises. A Terra deixou de ser o centro do universo; a mente humana não é mais uma série de camadas em direção a um núcleo único e indivisível; as imagens foram desmascaradas como “simulacros” a serviço do consumo e da superficialidade. O próprio olhar tornou-se suspeito, como cúmplice de uma estratégia dissimulada para “vigiar e punir”. Finalmente, com a onipresença da Internet, consolida-se a constatação dos imprecisos contornos da identidade. Mas, apesar de tudo isso, na obra de Monica Barki as imagens e, principalmente, a figuração continuam aptas a condensar verdades.
Para Monica, imagens são porta-vozes honestos e confiáveis para comunicar sua incompletude e inconformismo, para assisti-la em sua busca por autoconhecimento. E são assim não só as imagens finais, resultantes de um longo processo de trabalho, aquelas mostradas como pinturas e desenhos desta exposição. Todo o caminho que leva às pinturas de grande formato em sua produção mais recente é feito de um contínuo legitimar e reativar imagens anteriores. No final, uma obra se apresenta como síntese e afirmação de várias linguagens, vários meios, de várias imagens.
É um constante acumular, reunir e sintetizar registros prévios, num procedimento que, ao mesmo tempo em que faz transcender uma figuração produzida num determinado meio, uma após a outra, também as torna permanentes. Nas pinturas da série “Cárcere”, por exemplo, conviverão para sempre não só o embate entre os sexos, como a inter-relação entre vídeo, fotografia e performance.
Um outro exemplo das várias operações de síntese realizadas nesta exposição está sinalizado no “eu” do título da exposição. Quem é este eu? Numa leitura apressada, seria a própria artista, que nos atrai como uma Dominatrix para um espelho onde contemplamos nossa indiferença diante do machismo e da opressão. Mas, para, além disso, sempre que um visitante ou qualquer pessoa citar este “Eu me declaro”, automaticamente ele ou ela estará se integrando, como co-declarante, a este eu transcendental fundado pela mostra.
O eu da artista se dissemina por meio da sua fé na figuração. Ainda que um quadro ou desenho tenha limites bem definidos, cada um deles é um convite para que a identidade da artista (uma identidade da qual faz parte a capacidade de gerar imagens de si mesma) seja reelaborada coletivamente. Na Revolução Digital, a figuração reacende o debate sobre as relações entre imagem e identidade, entre permanência e fluxo, entre virtualidade e presença: o corpo da artista, então, age como um farol que ilumina os dilemas do corpo do espectador numa época onde as relações humanas se desenrolam em grande parte sobre um teclado.
A exposição está organizada em quatro espaços distintos e se sugere que sejam percorridos nesta ordem: “Sala Sínteses”, com trabalhos que sintetizam numa imagem final registros realizados em suportes diversos; “Sala Metafísica”, um ambiente que acentua aspectos lúgubres em obras sobre a condição humana; “Sala das Máquinas”, com obras animadas por mecanismos giratórios que convidam a uma reflexão sobre uma possível insuficiência dos suportes “puros” na contemporaneidade e, finalmente, “Sala Origem”, onde se propõe o reencontro com obras inaugurais e uma meditação sobre a perfeita integração entre figuração e identidade, presente já na produção da artista no final dos anos 1970. Com este percurso, a ideia é mostrar e reinterpretar sínteses realizadas ao longo da rica trajetória de Monica Barki, convidando os visitantes a uma caminhada até o ponto de partida onde se pode sentir o borbulho da Fonte das Imagens.
Rio de Janeiro, 2017
Texto de Frederico Dalton
Para a exposição “Eu me declaro” Monica Barki
O secreto está aqui. Supostamente revelado. Por que não admitir que a arquitetura mencionada no título desta exposição pode ser também a arquitetura desta galeria? Desta forma, igualam-se o espaço retratado nas obras da artista e o ambiente onde estas fotos estão sendo compartilhadas. Motel e galeria de arte como momentos de contato como uma mesma energia que dá visibilidade a instintos e que alimenta o visual como revelação. O secreto desvendado nas fotos e o secreto guardado na cabeça do espectador colaboram na construção de uma arquitetura do olhar.
Da mesma forma que um quarto de motel é campo de reverberação de imagens, reflexos de desnudamentos e consagração do visual, uma galeria de arte celebra o que o olhar tem de cultural, predatório e instável. O quarto de motel parece nos dizer que o sexo não existirá se ele não for visto e multiplicado como informação visual o maior número de vezes no período em que se estiver ali. Afinal, o motel é um palco onde o visual é cobrado por horas. Os espelhos multiplicam os amantes, criam uma plateia de voyeurs feita deles mesmos: um público virtual dentro do privado.
Também o olhar dos espectadores na exposição resulta de rebatimentos entre as obras, entre os corpos e o lugar. É um olhar que, assim como no motel, já nasce com os momentos contados. Comparada com a experiência de quem ouve um concerto, numa fruição estendida no tempo e muito mais mental que física, numa exposição o espectador salta de trabalho em trabalho como se experimentasse pequenos orgasmos. Há uma ânsia na natureza do ver. Onde focar? Por quanto tempo? O todo ou a parte, o que priorizar? Há uma instabilidade. Ânsia e instabilidade caracterizam tanto o amor praticado nos quartos de motéis quanto o percurso de um espectador numa exposição de arte.
O mundo é feito de relações. E aquilo que a artista torna visível (objetos cortantes, situações eróticas, sadomasoquismo) é tão intenso e forte quanto o que os espectadores escondem. No fundo (e nas aparências), tudo é um jogo de poder. O visual exerce seu poder sobre o sexo, a artista exerce seu poder sobre a arquitetura e o público exerce seu poder sobre a artista, que dele é escrava, que para ele faz arte, se fragmenta, se expõe, trabalha. Vencedora nas artes marciais e nos jogos que se desenrolam nas imagens, a artista curva-se ao olhar do espectador: impassível, soberano. Parado por míseros segundos apenas diante de cada uma das fotos da exposição, o espectador se detém com compostura, como se tudo entendesse. Porém, sua ignorância e incompletude estão muito bem disfarçadas.
“Arquitetura do Secreto” de Monica Barki é uma exposição sobre relações, sobre o olhar do poder e o poder do olhar. São muitos os atores aqui. E no drama destas relações se destacam o dizível e o indizível, o que pensamos saber sobre nós mesmos e os enormes esforços que empreendemos para de alguma forma existir. É um evento sobre o olhar do poder, sobre como o poder se veste, se configura e se organiza para melhor nos enquadrar; e sobre o poder do olhar, sobre como o poderoso olhar do espectador é capaz de nos desnudar.
Rio de Janeiro, 2017
Frederico Dalton
Sobre “Arquitetura do Secreto”, de Monica Barki
Em um quarto qualquer, desses onde segredos transbordam dos lençóis e sussurram das paredes, fábulas do feminino e masculino se transformam em enredo mitológico. Seres metade humanos, metade animais são vistos em seu habitat natural, à vontade, despreocupados em se ocultar da moral coletiva. Ali são vivos e reinam, pois reconhecem os recintos como puros templos da liberdade. Seres, esses, presentes no íntimo de cada indivíduo, seja homem ou mulher, e que se embalam em tramas de emancipação do corpo.
As fotografias de Monica Barki foram todas realizadas em quartos de motéis, de uma cidade qualquer. Aproveitando-se da decoração, iluminação e elementos próprios de tais ambientes a artista cria narrativas autobiográficas e universais tendo como roteiro o conflito, a dominação, fantasias e o sexo. Máscaras de animais em corpos seminus beiram uma atmosfera nonsense digna das fantasias sexuais que rondam o imaginário coletivo, porém muitas vezes postas em um universo subversivo, quando não, totalmente reprimidas. Manipulada digitalmente, a série Desejo inaugura um novo caminho de pesquisa fotográfica para a artista que se situa como personagem principal das cenas retratadas ao executar ações carregadas de erotismo e mistério, conduzindo a obra ao diálogo com teatro, cinema, literatura e pintura.
Relações conflituosas sempre estiveram presentes na obra de Barki. Desde suas primeiras pinturas, dos anos 1970, aos mais recentes desenhos, como a série Lady Pink et ses garçons (2009-2011), a dominação entre gêneros se faz questão e aporta a obra a uma revisão atemporal sobre a representação social da mulher no campo dos elos afetivos. Na base da estrutura patriarcal de cultura, a mulher foi entendida apenas como mãe e esposa, subjugada ao homem e impedida na manifestação dos desejos. Ao perseguir o autoconhecimento e a gerência do corpo, a artista foca toda sua produção na investigação dos jogos de poder, exacerbando em suas obras sentimentos comuns a estes contextos, como raiva, impotência, humilhação, autoridade e soberania.
Desta forma, as fotografias que compõem Desejo tangenciam a busca pessoal de Barki com a de milhares de mulheres que cavam diariamente o direito à independência em relação aos códigos machistas de conduta, impostos historicamente à toda sociedade. O feminino presente na obra se torna um signo universal de libertação sexual e firmeza na decisão de revelar íntimas fantasias. A obra afirma o ato sexual como rito, assim como acreditavam civilizações da Pré-história à Antiguidade, que o viam como culto religioso com sacerdotisas-prostitutas salvaguardando templos. Ao passar dos séculos e chegada da era medieval, a construção de tabus e imposição de regras ao comportamento sexual foram firmando-se por instituições religiosas e governamentais como medidas de controle à população, encontrando somente em meados dos anos 1960 um desaperto, revertendo-se em conotação política e identitária. Em Desejo o sexo como espiritualidade e redenção une-se ao discurso do corpo e de gêneros, cada vez mais engajado na contemporaneidade, e faz da obra uma apologia à sua própria história.
A escolha da artista pela imagem da mulher unicórnio como símbolo desta exposição não foi mero acaso. Como símbolo de pureza, castidade e força, o equino representa a penetração do divino na Virgem Maria. São seres mágicos, dóceis e fabulosos, porém também selvagens e de difícil dominação, sendo somente pelas mulheres virgens que se deixam capturar.
Rio de Janeiro, 2014
Beatriz Lemos
Texto de apresentação para a exposição de fotografias da série “Desejo”, Galeria TAC, set. 2014
Em 1975, ao pintar Autorretrato com espelho,[i] o que vemos na tela é a própria artista, de costas, pintando a si própria através de um espelho de mão, no qual se observa apenas seu olho. Além da citação à pintura de Velásquez, o que se dá a ver é uma menina em vestido singelo, e o que se supõe é a presença de outro espelho, invisível aos nossos, que mostra para a artista – e somente para ela – suas costas. Trata-se do campo cego, contraponteando aqui como em boa parte da obra: o que se mostra revela o que se esconde, disse Elisa de Magalhães. Ou, como em Didi-Huberman, o que vemos e o que nos olha. No caso, enfrentamos o jogo do olhar da artista, olhando a si própria no espelho de mão, no espelho oculto, e na tela como se espectadora de si, ao nosso lado, aparentemente cúmplice, mas de fato quase sem se dar a ver. O que vemos não é seu corpo, nem a imagem dele, mas apenas seu olho.
Na tela O banquete, de 1976, a imagem da artista se oferece nua sobre uma mesa de jantar, posta para seis pessoas. Novamente nada se vê desse corpo nu, apenas denota. Creio que essa sonegação é parte da estratégia da artista, como observaremos em algumas das fotos atuais.
A presença da fotografia na obra de Monica Barki remonta aos seus primeiros trabalhos, mais precisamente às gravuras oriundas de fotos do álbum de sua família. Inclusive, uma delas lhe rendeu um processo familiar. É desse período a presença de certa imperdonabilidade, com a autodissolução da própria família, seu tema e modelo. Isso irá reverberar posteriormente em obras como Coco bobo e Ana C., onde a artista se dissolve em si própria e/ou em seu modelo, ou seja: é, mesmo quando não é. Já não há mais qualquer possibilidade de perdão. Creio que estão nessas obras o tour de force que marca seu discurso: artista desnuda-se para se velar: re-vela-se.
O vínculo familiar, todavia, não se dissolve totalmente. A presença da fábrica da família faz-se presente em uma instalação com pó de café e máquinas de costura na exposição Orlândia, em 2001. Os excessos mais-que-barrocos das assemblages, em seu delírio de costuras e cores, também fornecem outro vínculo forte e coerente com sua fase atual, se é que podemos chamar de fase uma obra em contínuo processo: a decoração dos quartos de motéis, que algum arquiteto ensandecido criou tentando adivinhar nossas taras e possibilidades de excitação e desejo, está presente em um grande grupo de fotos produzidas por Monica Barki, e que não foram mostradas ainda. Há nesses ambientes, uma predisposição ao kitsch e ao excesso, prendendo volutas art nouveau em retas art déco, como se se obrigasse Jiri Mucha ou Aubrey Beardsley a desenhar em linhas retas.
Se a perversão e a devassidão são expostas ou sugeridas nas imagens colhidas na internet e que servem de modelos “vivos” para Lady Pink et ses garçons, o que se dá a ver é o controle do lápis sobre o papel que afirma a primazia da mão perfeitamente educada.
Nas fotos atuais, não se deixa de observar uma grande presença de espelhos e a imagem da artista sempre em algum velamento. O que salta imediatamente à vista é o corpo nu. Pois bem, o corpo nunca está nu, visível, frontal, exposto: há sempre algum tipo de interdito, um véu, uma máscara, até a posição na imagem, como em Dois espelhos, a afirmar um jogo de esconde-esconde. Nas imagens do amanhecer na janela, o corpo que parece nu, está em tal contraluz que não se define. Não se define mas se supõe. Talvez seja aqui que a artista se desvela, quando abre espaço para suposições.
Destaco, também, o fato de não vermos quem opera a câmera: nítidamente não é a artista, salvo em Getúlio. O que pressupõe ter a câmera sido cuidadosamente posicionada para não refletir no espelho quem a opera, retirando a identidade/identificação do cúmplice/não-parceiro: trata-se da criação de uma obra de arte de autoria solo. Algumas das fotos poderiam até ter sido feitas com disparador automático, mas a postura da artista em cena supõe a presença do outro, e aqui esse outro somos nós, o espectador. Aquele outro, o disparador da câmera, estará presente, todavia, mesmo que seja utilizado algum programa de retoque da imagem – como o photoshop –, o que remonta à época de execução das gravuras. Aliás, é no retoque que se pode notar sua frieza, aqui presente na tonalidade escolhida, bem como a forte presença da pintura. Apesar de usar uma câmera fotográfica, ela retira da foto a sua qualidade de fotografia: talvez a artista esteja pintando com outros meios.
A posição dominadora/dominada presentifica-se na alegoria de alguns animais, fantásticos ou não, como o gorila do tipo King Kong, a mulher unicórnio e o homem lagarto, e ainda a própria artista como se subindo pelas paredes e/ou acuada no canto. A expressão “subindo pelas paredes” diz de Desejo, título da exposição. Numa leitura simples do mito do unicórnio, que não cabe aprofundar aqui, essa besta fabulosa é de origem oriental, ligada ao terceiro olho e ao acesso ao Nirvana, ao retorno ao centro e à Unidade, na direção da transmutação interior que reconstitui a androginia primordial[ii]. Também está presente no sonho de um dos pacientes homens de Freud, que é violentamente crítico em relação a isso, o que leva Lacan a discutir essa violência. Lacan[iii] evoca a fórmula de Serge Leclaire, “poordjeli”, palavra criada a partir da expressão pauvre Philippe usada pela mãe de um paciente de Leclaire que sonhava sempre com o unicórnio, para adormecê-lo. Em francês, unicórnio é licorne, e assim “poordjeli” surge da sonoridade de pauvre, je (eu) com as sílabas do “li” de licorne e de Philippe, que permite “introduzir nessa sequência toda uma cadeia em que se anima seu desejo”, e afirma que a interpretação é uma significação que faz surgir um significante irredutível. Lembrando que, na definição de Houaiss, significante é a imagem acústica que é associada a um significado numa língua, para formar o signo linguístico [Segundo Saussure, essa imagem acústica não é o som material, ou seja, a palavra falada, mas sim a impressão psíquica desse som.] Ou seja, a cadeia significante determina o sonho e a estrutura da linguagem é inerente ao inconsciente. Não é o desejo e sim o gozo que deve ser considerado, e os dois tem que ser considerados como em oposição. Extraí de um texto do psicanalista Conrado Ramos que:
“Do lado do simbólico um Poordjeli serve para nomear o desejo do Outro e esvaziar o real no simbólico. Se um Poordjeli pode ser o falo real, é a ele que cumpre a função de verificar o furo, isto é, enodar duas consistências que, sem que ele se produza, seguem soltas: o simbólico e o sintoma. [O] furo não é ontologicamente anterior ao cuspe; é a cusparada do furo que gera o próprio elemento que faz o furo, pelo qual o furo se verifica. Um Poordjeli pode ser, portanto, o suporte material do furo, pois o furo é o que uma reta infinita faz no espaço.”[iv]
O unicórnio representa o falo materno e a recusa por Philippe de aceitar a castração de sua mãe.
O que permite o próximo passo: o Unicórnio possui o chifre rosqueado assim como a broca da furadeira de Getúlio. Cabeças cobertas, chifre e broca são o mesmo falo e reforçam o jogo de dominação, com o velamento típico da pintura exposto no anti-striptease da ordem das imagens. Lembremos que o Unicórnio, além de ser um sonho masculino, é exclusivamente macho, exceto em sua Unidade primordial andrógina, como já disse; e o sapo-lagarto pode ser a fantasia do príncipe encantado, no qual se misturam repulsa e desejo.
A exposição chama-se Desejo[v] apropriadamente. Aqui não há gozo, não há complementação, não há liberdade. Não há revelação, são imagens digitais, apenas imagens que se dão ao encontro com nossos olhos, com nossa imaginação, imagens opostas ao gozo e que põem em questão o recalque que aflora à pele.
Como quem vai banhar-se em água ou em sexo – ou quem sabe, apenas tomar um ar – a artista larga a calcinha enrolada no chão. Múltipla escolha.
Rio de Janeiro, agosto de 2014
Wilton Montenegro
Texto de apresentação para palestra na ArtRio em 2014
[i] Barki, Monica. Monica Barki: arquivo sensível. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011. Pode-se aprofundar essa questão com a leitura que Jacques Lacan faz de Alice no espelho, de Lewis Carroll, no Seminário 11.
[ii] O mito da androginia primordial está presente nos Upanishads; em Adão Kadmon, na Cabala; no Antigo Testamento, no livro da Gênesis; na segunda sura do Alcorão; em Plutarco e n’O Banquete, de Platão.
[iii] Feldstein, Richard, Fink, Bruce e Jaanus, Maire. Para ler o seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997.
[iv] Ramos, Conrado. A singularidade e a “universidade” dos fins e das consequências. O desafio dos AEs. In http://fcl-fortaleza.blogspot.com.br/2011/08/iii-encontro-internacional-da-escola_29.html. Fortaleza: Escola de Psicanálise dos fóruns do campo lacaniano, 2011.
[v] Desejo. Curadoria Beatriz Lemos. Rio de Janeiro: galeria TAC, 2014.
Diante de um sofá de quarto de hotel, sob a luz do abajur lateral, Eduardo e Verônica formam um par de estaturas contrastantes. A figura exageradamente alongada da mulher faz com que seu rosto seja projetado para longe. A parte superior do plano de fundo – de onde ela parece nos observar – torna-se difusa. A parede é como um céu turvo e enigmático que, com sua inesperada profundidade, alude ao longínquo. As poéticas da distância, sabemos com Bachelard, evocam o desaparecimento, a perda de si e a finitude.[1] Na atmosfera compartilhada pelo casal e por tantos personagens que vivem nos desenhos recentes de Monica Barki, o sentido de humanidade é riscado em espaços interiores: quartos de hotel, bordéis, ringues de luta. Nestes redutos alegóricos, mulheres descomunais, astutas, risonhas, violentas enfrentam homens frágeis, dominados, fetiches, como o pequeno Eduardo. O corpo, clássico emblema da subjetividade, é claramente retomado. Mulheres e homens beiram a aberração, enfrentam-se fisicamente em situações-limite.
A partir de vídeos ou fotografias capturados na internet, a imagem apropriada é impressa, remontada, ampliada e transferida para o papel onde a artista intervém graficamente. Por meio da tela digital, no ambiente doméstico, abre-se um infinito pouco nítido e a estatura da mulher em muito supera a do homem. Mais que indivíduos retratados, os pares formados por Barki – Lady Pink et ses garçons, Rachel X Tony, Eduardo e Verônica – apresentam uma tipologia emocional que vai sendo revelada pelo confronto. A luta se desdobra em vários rounds. A artista coleta, observa e interroga certa humanidade incoerente, delirante, de natureza sombria, que sabemos, não seria tão intensamente observável em plena luz. O desenho refaz a imagem digital com a tateante movimentação da mão, o vigor do traço e a modulação intimista da cor. Riscos opacos, de caráter artesanal e autoral, contaminam os registros anônimos.
Ao apropriar-se graficamente de imagens que circulam sem a chancela institucional da arte, Barki tangencia as poéticas da Nova Figuração brasileira, em parte identificada com a pop art norte-americana. Artistas como Rubens Gerchman, primeiro diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde a artista estudou gravura, investiram num imaginário pop (o futebol, as notícias de jornal, os transportes coletivos e diferentes visões do urbano), como crônica e crítica do urbano. O tratamento da figura por diversos artistas, como afirmou Frederico Morais, “após o declínio da abstração geométrica e informal, oscila entre o campo crítico (nova figuração, figuração narrativa) e a neutralidade ideológica (na verdade apenas aparente: pop art, hiper-realismo)”.[2] Em pleno curso da década de 1960, a cidade era considerada o cenário privilegiado de expressão e emblema das estruturas sociais vinculadas à cultura de massa. Passados dez anos da virada do século 21, as mídias digitais, a interatividade e a mobilidade constituem um lugar inédito em que os meandros da condição humana podem ser rastreados. Em seus fluxos Barki tem acesso a um imaginário disfuncional, tortuoso, grotesco e frequentemente cômico, onde circulam caricatas alegorias das fraquezas, perversões e prazeres humanos (sempre que possível, discretamente).
Os sete desenhos da série Lady Pink et ses garçons de 2009 são como fotogramas de uma sequencia cuja cena-fetiche alude à iniciação sexual masculina, apresentada aqui como luta livre. Ela imobiliza com o próprio corpo o frágil oponente – e sorri. O tema é retomado no tríptico Blade Runner que, com humor, evoca os conflitos explorados no clássico de Ridley Scott quanto à transposição do limiar humano do corpo. Para Barki, na luta pós-humana da mulher contra o homem, ela domina. Em The medium is the massage, o absurdo é tratado com ironia. A mulher imensa massageia com seu corpo esmagador o homem magro, desproporcionalmente menor, a quem subjuga com todo o seu peso.
Analisando a etapa precedente ao fortalecimento da mídia digital, quando a importância conquistada pela televisão permitia antever as grandes mudanças, McLuhan afirmou que, além de causa das estruturas sociais, os meios de comunicação teriam um impacto ainda maior no viver, tornando-se extensões do humano. Passariam, como sabemos, a se sobrepor ao lugar referencial até então ocupado pela cidade como campo privilegiado de investigação das sociedades contemporâneas.
As primeiras pinturas de Barki partiam de fotografias capturadas por ela nas ruas, na vida familiar ou de poses pré-determinadas. Transcorria então um movimento circular entre observação do Outro e autoconhecimento. Na década em que o feminismo se fortalecia – lembremos da convocação por Hélène Cixous para que cada mulher participasse ativamente de sua história e o fizesse por iniciativa própria –, a artista em formação arriscou um autorretrato. De costas para quem olha o quadro, quase menina, Barki se vê refletida em um espelho de mão que curiosamente tem a forma de um perfil feminino. Segura um pincel apontado para a grande tela em branco. Seu rosto está oculto, mas é parcialmente refletido no pequeno espelho através do qual seu olhar nos encontra. O vazio da tela parece infinito. Será monumental a tarefa do delicado pincel.
No mesmo ano, em O Banquete, o quadro é configurado como uma mesa observada de cima. Está preparada para uma refeição solene: toalha bordô, cristais e porcelana. Ao centro, mais uma vez dando as costas a quem observa a pintura, no lugar do prato principal, encontra-se o corpo da artista, oferecido à degustação. Ambas as pinturas, e outros trabalhos do mesmo período, guardam indícios de sinuoso processo de autoconhecimento. Com No cabeleireiro de 1978, por exemplo, Barki espreita os bastidores em que são reproduzidos os estereótipos do feminino. A pintura leva à boca de cena as etapas que antecedem o teatro dos grandes penteados e unhas rubras. No salão de beleza, sob a cúpula do secador, os rolos de cabelo moldam contornos de mulher. Ela parece distante, enquanto observa o esmalte nas mãos. Não está pronta.
A performance equivalente do masculino é apresentada com humor em Saiba usar a cabeça, pintura feita no mesmo ano a partir da fotografia de uma vitrine de perucas masculinas que exibe o antes e o depois. O mesmo homem surge com novo valor e o sorriso de quem recusa imitações: usa somente os “legítimos postiços” daquele fabricante. O uso da fotografia conduziu a artista ao hiper-realismo norte americano e a jogar com os limites entre a tela e o mundo (as bordas do quadro coincidindo com as da vitrine). Estas pinturas iniciais lançam insistentemente sinais das inquietações mais profundas na trajetória de Barki: a formação, a autoconsciência e as configurações identitárias da mulher estabelecidas no jogo social.
Uma galeria de personagens incongruentes compõe Álbum de família de 1982, litografias desenvolvidas na oficina de gravura do Parque Lage, paralelamente ao período de formação no Centro de Pesquisa de Arte.[3] A série de retratos em preto e branco inclui nas poses tradicionais – nascimento, aniversário, casamento, formatura –, indícios (nem sempre sutis) dos caprichos individuais, cumplicidades veladas, desejos e traços de caráter frequentemente apagados nas representações da família, rompendo o acordo tácito que a mantém unida. Embora vários personagens dessa série façam parte de sua coleção de retratos – o que gerou conflitos pessoais e judiciais com a própria família – os tipos configuram uma iconografia dos dilemas de toda vida familiar. Álbum de família constitui uma afirmação silenciosa, mas impactante, de percepções e conflitos decorrentes de um primeiro posicionamento da artista no limiar de seu mundo privado, ambiente em que pôde testar os contornos de uma dinâmica social mais ampla.
Vencido o impacto da Geração 80, que historicamente se contrapôs à anterior politização e desmaterialização da arte, as abordagens do sistema da arte assumiriam diferentes estratégias, dificilmente congregadas em uma única frente.[4] Reconsiderada como jogo a pintura de Barki passa, então, a incluir elementos manipuláveis pelo público. Novos jogos geométricos de 1991 sintetiza esta proposta. Imersa, com a maternidade, no imaginário infantil, explora o limiar entre a geometria dos brinquedos coloridos que passam a integrar seu cotidiano e a tradição construtiva brasileira. O lúdico, fortalecido no debate da Geração 80, é retomado com ironia por meio de comentários que sublinham o regime de compra e venda da obra de arte, um jogo dominado pelo galerista. O trabalho O Jogo do marchand, constituído por linhas e marcações que lembram o esquema de um circuito remete ao posicionamento dominante do marchand como mediador entre artista e mercado.
Os comentários críticos, as celebrações subvertidas (como em O Banquete), as ironias são pautados por suas próprias vivências, tingidas com a intensidade afetiva do momento, molhadas com os líquidos que brotam nas pequenas cavidades do sentimento inesperado, único, por vezes extremamente doloroso.
Na década de 1990 as pinturas de Barki são frequentemente realizadas a partir de colagens com fragmentos de imagens manipuladas em uma copiadora. Objetos tridimensionais, tais como tecidos, bordados, jóias, tapetes, colares, bonecos e fios, e ainda recortes de revista e de uma antiga enciclopédia feminina são processados graficamente, por vezes ao acaso. Essas pequenas montagens a seguir são ampliadas em telas de grande escala que podem ser reunidas em dois grupos. No primeiro, sob o impacto total da pintura, os fragmentos misturam-se em redemoinhos de cor e forma, cujas sutilezas levam a uma atitude investigativa. Não se trata de um jogo de esconder, mas há uma aproximação com as poéticas do informal. A pintura sustenta a indeterminação da imagem para levar o observador a uma transferência emocional e a involuntariamente completar as regiões indefinidas. Mantendo-se parcialmente abertas, as formas acolhem o imaginário do observador que pode observar-se de relance.
Outro conjunto de trabalhos aproxima-se dos procedimentos da colagem cubista e da montagem Dada. Fragmentos de texto, imagens dentro da imagem e planos de cor interagem em um jogo de combinações. Pinturas como Denise e sua beleza clássica, Mme. Brunnaut e As probabilidades de sucesso no casamento, todas de 1994, afastam-se da identificação da mulher com a maternidade. Vestido em pedaços de 1996, por exemplo, reúne fragmentos da figura feminina socialmente estereotipada. O breve texto escrito no quadro: “e ainda” ironiza o acréscimo de mais uma camada de babado na indumentária desajeitada, montada em um manequim cuja cabeça é separada do corpo. O colorido planar, quase matisseano, aproxima elementos díspares. Seu chapéu florido e os lábios vermelhos são recortados contra o fundo em que uma pequena e onírica figura feminina é envolta em um turbilhão de cores. Mas Vestido em pedaços não celebra o feminino. Todos os elementos são pedaços de uma mulher estranhamente ausente, incompleta, distante. A beleza clássica e o padrão estético de um manual francês em que os preceitos de Mme. Brunnaut ensinam a mulher a ser alguém – desde que para um homem – são meros fetiches.
Em seus ensaios sobre a sexualidade, Freud destaca que a formação do fetiche envolve uma substituição do todo pela parte e que essa quebra de unidade acontece principalmente naquilo que se vê. A impressão visual é a que mais desperta excitação – daí todas as considerações sobre a beleza, a forma, a cor ou o brilho de tudo a que o desejo está associado. A arte move o interesse em sentido contrário: da parte para o todo, e permite a superação da dimensão do fetiche. Entrelaçada aos desvios do desejo, a arte não seria um campo privilegiado para a investigação do feminino? [5]
Matrizes distintas das fotografias inicialmente utilizadas, as imagens desde 2009 apropriadas na internet constituem fragmentos daquele corpo social antevisto por McLuhan. A artista o observa, coletando as modalidades de cada gênero e o variado espectro de relações entre ambos – submissão, desejo, raiva. Porém, os processos adotados de captura e edição – recortes sensíveis naquele arquivo sempre em expansão – funcionam também em sentido inverso, como rastreamento das próprias emoções veladas e, por vezes, como catarse.
Rio, outubro de 2011
Luiza Interlenghi
Texto extraído do livro “Monica Barki: Arquivo Sensível”, editora Aeroplano
[1] Refiro-me às considerações de Gaston Bachelard em A água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[2] Frederico Morais in verbete Neofiguração da Enciclopédia virtual Itaú Cultural. Acesso em outubro de 2011.
[3] As aulas no Centro de Pesquisa de Arte, com Bruno Tausz, herdeiro de uma didática adotada por Ivan Serpa e direcionada ao autoconhecimento, abriam-se mais frequentemente à figuração e, em parte, ao debate conceitual. Em ambos os casos buscavam-se vínculos humanistas de caráter analítico, um aspecto central na produção da artista.
[4] Na década de 1970, a identificação do mercado com o próprio capitalismo levava a um posicionamento crítico frente ao chamado circuito da arte, considerado uma extensão do sistema capitalista. A presença material da obra, especialmente na pintura, era duramente atacada como objeto-fetiche. É contra a radicalização deste posicionamento que a pintura será, em seguida, retomada. Anunciado como redescoberta de uma geração o novo interesse pela pintura, promoveu a reativação do mercado e a abertura de novas galerias nas principais cidades do país.
[5] Retomo algumas reflexões publicadas no texto da exposição Deslocamentos do Feminino (2000), Centro Cultural da Caixa, RJ, sob minha curadoria.
Na utilização cotidiana de mangueiras de jardim e aparelhos elétricos com seus implacáveis fios e cabos, Monica Barki descobre o potencial plástico e simbólico do tubo plástico. Além do interesse despertado por sua infinita variedade de cores, consistências e calibres, por serem condutores, os tubos nos permitem pensar na comunicação entre matérias e no transporte seguro de energia e informação. Mas sua essência utilitária e sua forma reduzida ao máximo por uma função absolutamente nítida também falam da repressão de um fluxo. Assim, como um maestro (conductor, em inglês) na regência de uma orquestra, um tubo é tanto o facilitador de um jorro como o perfeito regulador.
E é também uma articulação entre lirismo e método que Monica Barki realiza em sua série Novos jogos geométricos (1991), mostrada na Bienal de São Paulo deste mesmo ano. No espaço da exposição há cestas contendo pedaços de tubos de variadas cores e diâmetros. Os visitantes são convidados a encaixá-los em determinadas lacunas recortadas em quadros de grande formato. Estas pinturas, que na verdade são composições geométricas apesar de suas formas “moles”, são o terceiro integrante desse jogo. Na parte da pintura onde um novo pedaço de tubo é encaixado é deflagrada uma relação nova entre planos diferentes.
A controlada liberdade proporcionada ao espectador-participador de Novos jogos geométricos é metáfora da própria geometria na pintura, que geralmente se utiliza de formas pré-racionalizadas (o quadrado, o triângulo, o retângulo) para introduzir o mistério sem o qual a arte não existe.
Rio de Janeiro, 2011
Frederico Dalton
Texto para o livro da artista “Arquivo Sensível” sobre a série Novos jogos geométricos exposta na 21° Bienal Internacional de São Paulo 1991
Julio Reis entrevista a artista Monica Barki por ocasião de suas exposições na Galeria Anna Maria Niemeyer (Rio, 2010) e na Casa da Cultura da América Latina (Brasília, 2010).
Monica Barki, uma das mais completas artistas contemporâneas brasileiras que surgiram no início dos anos 80, em entrevista ao jornalista e colecionador carioca Julio Reis ( http://www.opapeldaarte.com.br ) nos fala sobre sua mais nova série de desenhos intitulada “Lady Pink et ses garçons” e o vídeo “Vermelho sobre Branco” , também de sua autoria, expostos recentemente na Galeria Anna Maria Niemeyer (RJ, ago. 2010) e na Casa da Cultura da América Latina (Brasília, out. 2010). Monica nos conta sobre o seu mergulho no YouTube, atual fonte de inspiração, veículo de disseminação e , concomitantemente, matéria-prima para os seus trabalhos.
JR: O crítico de arte Frederico Morais, num belo texto de 1994, diz que sua pintura insinuava o inacabado dos croquis, mas que na verdade é tudo calculado, premeditado, cercado por um domínio técnico. E podemos atestar isto ao vermos seus desenhos da suíte “Lady Pink et ses garçons”. Ao passearmos por essas imagens, esses personagens Fellinianos de Satyricon, nos perguntamos como foi o processo de criação dessa suíte. E porque escolheu o desenho ao invés da pintura para criar esses personagens?
MB: Quando adolescente, tive um professor maravilhoso que me dizia: técnica todo mundo pode aprender, mas conteúdo, isto é, o que fazer de interessante com a técnica, isso sim, é uma questão difícil de ser resolvida. Eu criei a série “Lady Pink et ses garçons”, a partir de um vídeo intitulado “Vermelho sobre Branco”, de minha autoria, quando o postei no YouTube e percebi que este tinha ficado relacionado a outros, que tinham ligação com o tema da luta corporal. Comecei a assistir e investigar uma quantidade enorme de vídeos na rede e me senti atraída por cenas realmente fellinianas, personagens bizarros e aberrações dignas de cair o queixo. Tinha comprado um rolo de 20 metros de papel fabriano há um tempo atrás e não sabia como ia usá-lo. Ele estava me pedindo por favor para ser usado. Já não desenhava há quase 20 anos e estava com vontade de experimentar uns lápis em tons de sépia, que tinha comprado numa viagem recente à Nova York. O tom de sépia é interessante porque dá a impressão de atemporalidade à cena retratada. Eu queria fazer também desenhos tipo “cineminha”, isto é, desenhos que tivessem uma sequência de movimentos. Além disso, estava precisando me concentrar em alguma coisa que me desse prazer, pois estava passando por uma fase difícil em minha vida, uma fase de grande mudança, que culminou com o falecimento de meu pai. Então, eu me sentava pra desenhar, e ficava horas a fio debruçada no desenho como se estivesse praticando yoga ou meditação. Esse processo foi terapêutico e gratificante pra mim.
JR: Em diferentes momentos de sua carreira você retorna ao papel como continuidade de sua obra. As pinturas, assemblages e esculturas são produzidas e nos intervalos entre elas sua obra em papel volta a aparecer. Seria esse um momento de retorno ao desenho, uma pausa para reflexão mais íntima de sua arte ou você utiliza todos os suportes simultaneamente?
MB: Eu geralmente crio uma série na medida em que vou desenvolvendo uma determinada técnica e quando concluo essa série e a exponho, sinto logo vontade de começar a desenvolver uma outra técnica, uma técnica diferente. Adoro explorar novos materiais, novos suportes. Gosto de me enveredar por caminhos desconhecidos e quando aprofundo, costumo descobrir técnicas e métodos muito pessoais. Concordo com você que o desenho abre a possibilidade de uma reflexão mais íntima e com esta exposição particularmente, sinto que estou expondo e “me expondo” também muito. A opção é minha.
JR: Monica, ao olhamos retrospectivamente para sua carreira vemos que você é uma artista ilimitada no uso dos mais variados suportes para sua criação artística. Papel, telas, rolos, tecidos, plásticos, couro enfim, todos esses materiais se moldam às suas mãos, lhe são subordinados. O papel especificamente reencontra suas origens e sua importância na arte quando você produziu por exemplo em 1982, numa série de litogravuras cujo tema eram fotos de sua família. Poderia nos falar sobre esse diálogo constante que você mantêm com o papel, explorando sob um novo olhar técnicas tão tradicionais ?
MB: Essa série de litografias, a qual chamei de “Album de Família” foi um marco na minha trajetória. Nessa época frequentava o atelier de gravura da Escola de Artes Visuais do Parque Lage e tinha 24 anos, quando fui convidada a expor pela primeira vez no Rio. Nunca imaginei que essa exposição causaria tanta polêmica. O fato é que algumas pessoas da família levaram na brincadeira, pois a minha intenção era essa mesmo, porém houve outras, que alegaram uso indevido da imagem e que o meu trabalho era pornográfico e me processaram. O trabalho foi apreendido pelo oficial de justiça em pleno coquetel de inauguração da mostra . A notícia correu a solta pelos jornais e logo em seguida ganhei 3 prêmios pelo Brasil apresentando parte da série que felizmente não tinha sido apreendida.
Agora, na série Lady Pink et ses garçons, eu retomo o desenho, mas de outra forma, capturando imagens da rede mundial. Sinto que estou mais amadurecida, minhas ideias e sentimentos são universais, e falo de um tema básico, fundamental: a mudança que ocorreu na mulher dos dias de hoje… estou falando da virada da mulher vítima e submissa para a mulher guerreira, poderosa, sagaz. Com uma alta dose de humor, é óbvio e eu adoro!
JR: Algum tempo atrás você criou uma interessante exposição onde ironicamente questionava os valores da reprodução da arte, vendendo imagens criadas por você inspiradas em vários temas sobretudo a literatura de cordel e que eram disponibilizadas para a venda na forma de rolos e vendidas a metro. Pode nos falar um pouco sobre essa curiosa experiência e o que a motivou a produzir esses “rolos de arte” ?
MB: A série de bobinas foi uma outra descoberta minha muito peculiar. Eu tinha ido a uma papelaria em Petrópolis, onde morava, e na hora de embrulharem o que eu havia comprado, puxaram o papel de um desses rolos que ficam em suportes com um serrilhado e eu então percebi a logomarca da papelaria impressa e perguntei pra moça do balcão onde é que se fazia aquilo. Ela me deu o endereço de uma fábrica de bobinas em Itaipava e lá fui eu investigar. Descobri , que eles estampavam outros desenhos que chegavam a ser mesmo minuciosos. Preparei alguns desenhos conforme eles tinham me explicado, gravei num CD e levei para a fábrica para que as matrizes fossem feitas. Nessa época, estava trabalhando um outro tema, tinha viajado pelo nordeste e tinha me apaixonado pelos mamulengos, bonecos típicos do teatro popular nordestino e que são super expressivos.Comecei a desenvolver e imprimir muitas bobinas e me veio à cabeça a ideia de vender a metro. Cada bobina tinha cerca de 350 metros impressos e os desenhos lembravam a técnica da xilogravura. Pensei: por que não vender a metro? Quanto mais imprimo, mais barato sai o metro da gravura! Dessa forma meu desenho se tonará acessível a todos! Algumas pessoas chegaram a comprar 30/40 metros para forrar um quarto como papel de parede! Na realidade eu estava questionando o valor da arte e discutindo também a questão da circulação da obra de arte.
O mundo de hoje é marcado pelo consumo descartável, pela pressa, pelas relações superficiais e pela dificuldade de pensar. É um mundo mediado pelos veículos de comunicação de massa que estimulam este processo. A quantidade maciça de informações disponíveis a todo segundo leva a um tipo de relação com as coisas e as pessoas em que o pensamento e a atitude contemplativa diminuem na razão inversa desse fluxo. O tipo de relação que então se estabelece é de diminuição do contato com a realidade, com a experiência e a reflexão.
Em Lady Pink et ses garçons, Monica Barki capturou imagens da internet e, a partir delas, elaborou seus desenhos. Ao retirar as imagens da rede mundial de computadores e reinterpretá-las por meio do lápis e do papel texturizado, Monica Barki retoma o caráter único da obra de arte em um novo contexto, em uma operação que se aproxima das falsas tipografias de Roy Lichtenstein, quando ele retira e reinterpreta imagens das tiras dos quadrinhos. Fazendo uso dos vídeos caseiros postados no YouTube, que se caracterizam por uma despreocupação com acabamento, resolução e qualidade da imagem, Monica expressa com sua arte as características de um novo tempo: é a estética YouTube.
Seus trabalhos – entre os quais, The medium is the massage (1 e 2), presentes nesta mostra, são de preciosa ironia – subvertem o medium eletrônico e desconectam a imagem da web, onde a circulação e a manutenção da rede configuram-se no próprio sentido. Estranhamente isoladas, com a visualidade alterada e a imaterialidade de bytes e íons encarnada em grafite, as lutas livres adquirem novos significados em um código original, incomunicável numa escala de valores digitais. É o artista que distingue em processo analítico/criativo os elementos que irão constituir a obra de arte. A baixa resolução dos vídeos originais se transforma em conjuntos de granulados e de riscos que reiteram o fazer artesanal, perceptível nos contornos bem-ajustados e no jogo de claro-escuro que molda os estranhos personagens. A despeito de seu realismo, Lady Pink et ses garçons revela a fatura manual que se perde em reproduções fotográficas. Ela é à prova de cópia. E exige a presença do espectador.
Fora da rede, os vídeos transformados em desenhos ganham uma nova visibilidade ao serem submetidos a uma dupla suspensão. Sem movimento, eles retornam ao fotográfico, raiz de toda arte (dita) tecnológica. E também por aniquilar qualquer caráter documental ao qual ainda pudessem estar atrelados. Há algo de perigosamente ambíguo nestes desenhos, cuja incerta semelhança com o que entendemos como real põe em risco as fronteiras entre matéria e memória.
Em sutis deformações anatômicas, o desenho meticuloso de Monica Barki focaliza a mulher vencedora, guerreira, em ringues de telecatch ou em seu duplo simbólico, prostíbulos e alcovas. Assim, Monica subverte o olhar sobre a condição feminina, uma questão recorrente em sua produção. A lógica de dominação é invertida, com lutadoras submetendo e humilhando o masculino sob corpos sobre-humanos, com deboche e abundância. A supremacia feminina tem dimensão biográfica e sociológica. E artística também.
Rio de Janeiro, julho de 2010.
Mauro Trindade
Texto de apresentação para a exposição Lady Pink et ses garçons na Galeria Anna Maria Niemeyer Rio de Janeiro 2010
Novas telas de Monica Barki retomam velhas questões
Há idéias que persistem. A de que existe um espaço privado, feminino, passivo e emotivo que estimula e acolhe eroticamente o poder masculino, habitante de um espaço exterior e com interesses racionais, vem do século 18. E persiste até hoje. Monica Barki desloca esta estrutura que vem sustentando boa parte de uma arquitetura conceitual ainda vigente. Nas seis telas que compõem sua nova exposição, na Galeria Anna Maria Niemeyer, intitulada “Ana C. e outras histórias”, mas também nas técnicas de impressão, a artista encarna esta passividade pronta a receber o poder masculino, como a grande boneca-personagem, Ana C.
Um mamulengo, “Ana tem gana, Ana engana, Ana sacana…”, como querem os versos de Monica Barki. Mas é também uma Ana exposta de braços inermes que sofre as sacudidas de quem a empunha. E que é amarrada por dois homens fortes (em uma de suas exposições anteriores) e, imobilizada, vai em cana.
Esta, a manifestação mais clara. Há outras. A tela “A compra” mostra uma parede-pele sofrida, vivida, e que, no entanto, ainda se oferece, prostituta, em uma transação comercial. Trata-se, em uma primeira vista, da velha afirmação pela antítese, na busca da periferia, do anônimo, do individual, do fracasso e do sofrido, núcleo isotópico a ser carregado de afetos variados por boa parte da criação feminina, mesmo na contemporaneidade.
A primeira tela que se vê, ao entrar na galeria, é “Na varanda do nosso apê”. Nela, o alerta de que há um deslocamento, uma polinização cruzada entre os dois posicionamentos tradicionais do espaço feminino e masculino. Um campo de linhas paralelas (a grade) e um conjunto de quadriláteros (as janelas) formam uma estrutura geométrica, racional. Mas, dentro de uma das janelas, está o diabo de pernas abertas. E, principalmente, a varanda é vista de fora, da rua, e não do espaço privado do interior do apartamento.
É na rua que Monica Barki está. Ela compreende e representa o espaço feminino, conhece este estar-no-mundo. Mas é de um espaço masculino que ela pensa o primeiro. O termo pós-moderno, de tanto ser mal usado, perdeu qualquer credibilidade.
Mas a linguagem de Barki inclui uma desconstrução – esta bem atual, que nada tem a ver com o século 18 – através da descentralização autoral (ela utiliza cartazes, fotos, elementos de cordel, manipulação digital); a ironia (outra de suas telas tem por título “Ana querida…”); a problematização da representação mimética (um diabo?!); a mistura de técnicas nobres e populares; e a imbricação entre o ícone e o desvio: em “Retrato de Monike”, a figura tem o mesmo vestido que Ana C., mas apresenta uma expressão determinada de quem detém um poder não necessariamente benéfico.
Em outra clave, a artista também desconstrói as palavras presentes em suas obras. Não mais sintagmas, mas sons, apenas sons, repetidos, desviados, em mais uma subversão da lógica racional (e masculina).
Há mais uma volta neste parafuso. Ana C. é um mamulengo, figura tradicional da cultura nordestina, “Chique & Xique” nasceu de uma foto tirada na Feira de São Cristóvão, há onças e jacarés citados em uma de suas colagens. Da boneca gigante e inerme passa-se para outro gigante, este adormecido em berço esplêndido. Monica Barki compreende e representa um erotismo, se afasta dele para pensá-lo e inclui, neste pensamento, uma visão política.
Em 1982, ela fez sua primeira exposição, um álbum de família. Nela, a mesma erotização aparecendo em interferências de fotos posadas, tradicionais.
E uma retomada e um passo além.
Rio de Janeiro, abril de 2006
Elvira Vigna
Sobre as bobinas de Monica Barki
Mais conhecida por sua obra pictórica, Monica Barki, no entanto, começou sua carreira artística com a polêmica série de litografias produzida a partir de retratos de sua própria família: fotografias de parentes foram manualmente reproduzidas com sutis acréscimos de teor erótico. Eram interferências que dependiam da mestria artesanal da artista, então interessada nas questões do hiper-realismo.
Passados mais de 20 anos destas experiências iniciais, Monica retomou recentemente sua pesquisa gráfica. As Bobinas que vem produzindo resultam da combinação de imagens, frequentemente inspiradas em motivos populares – o cordel, por exemplo –, reproduzidas repetidamente em bobinas de papel de embrulho industrializados.
Diferentemente do caráter quase fotográfico de suas litografias, as imagens impressas nas bobinas não possuem qualquer teor realista ou naturalista. Elas não ocultam sua origem manual, nem tampouco as convenções presentes nos repertórios de uma gráfica das camadas populares da cultura brasileira urbana, tanto no que se refere à sua configuração formal, quanto em seus conteúdos temáticos. O teor artesanal das imagens, no entanto, ainda que inequívoco, é subvertido por sua impressão serial e mecânica sobre intervalos regulares das bobinas de papel. Da tensão entre a produção artesanal e os processos industriais de reprodução da imagem pende o sentido poético destes trabalhos de Barki. A ela somam-se outros significados que complementam a sintaxe das Bobinas.
É sabido que a lógica do mercado de arte baseia-se em primeiro lugar na valorização da obra única, quase sempre artesanal. Séries implicam uma inevitável depreciação do trabalho de arte. Portanto não deixa de soar estranho que muitos artistas-pintores, por exemplo, adotem critérios de valoração de seus trabalhos fundados apenas nas dimensões dos mesmos. Qualidade e metragem seriam quesitos inconciliáveis para a aquisição de trabalhos de arte? É o que a irônica paródia de Barki parece-nos apontar quando vende suas imagens, sejam tecidos ou papéis, a metro.
Rio de Janeiro, setembro de 2004
Fernando Cocchiarale
Texto para o catálogo da exposição “Tapume”, no Espaço Cultural Sérgio Porto Rio de Janeiro 2005
Mãos em posição de ação, cano, sexo que explode e um alvo, uma vítima: mulher com a boca no cano-sexo, mulher-imagem-repetida cravada de furos. “O CABRA BOTA REVÒLVER NO OUTRO, ELE NEGA O CORPO, RASPA O DEDO, MAS A SURPREZA TÁ EMBAIXO. AI AI AI”. Em O Cabra (Tiroteio 1), 2002, de Monica Barki a frase mal escrita e em letras tortas reforça o conflito entre os personagens apresentados. A mais dramática da série de flexografias de Monica, O Cabra, trata diretamente do agravamento da tensão entre homem e mulher em conseqüência da pobreza e da exclusão social, tema dominante no conjunto de trabalhos apresentados na Galeria do Ibeu.[1]
Nas bobinas de papel fixadas na parede da galeria – ANA GANA ANA CANA; COCO BOBO; QUITÉRIA; O CABRA (TIROTEIO 1) ou BOLINHO DE AIMPIN –, Monica Barki exibe um fluxo contínuo de imagens e textos transformados em longos padrões de estamparia. Alguns rolos destas flexografias aparecem também em suportes de mesa com um serrilhado que permite à artista cortar pedaços do padrão impresso. Cada fragmento passa então a circular como obra autônoma.
Com o surgimento da litografia, diz Walter Benjamim, em seu texto seminal sobre a arte na era da reprodução, tornou-se possível ilustrar a vida cotidiana com agilidade maior que a da pintura. A moderna reprodução em massa e o surgimento da fotografia quebram o valor de culto até então associado à obra original. Ainda hoje o valor de culto da obra de arte não se perdeu completamente e Benjamim já observava a resistência deste valor de culto no retrato fotográfico que reverencia a expressão humana.
As matrizes das flexografias de Monica não são originais no sentido pré-moderno, mas, padrões gráficos e fotos digitalizadas e editadas, já destinados à reprodução. Estas matrizes podem ser impressas em vários suportes e aderem a diferentes superfícies. O valor da arte é uma questão complexa que envolve a crítica, as instituições, patrocinadores e curadores. Mas na regra capitalista, que tudo regula pelo mercado, seja peça única ou reprodução, a arte tem sempre um valor no mercado. A série de trabalhos de Monica Barki reunidos na Galeria do Ibeu investe na reprodução máxima da obra como estratégia de disseminação e resgate do Humano.
Na série de fotos que documenta a performance Coco Bobo, um casal está enrolado e imobilizado por uma bandagem impressa com as mesmas palavras, apropriadas de um letreiro de estrada. Se a crítica à dependência no casamento é a questão geral neste trabalho, a artista aponta a perda de identidade como fator de aprisionamento. Amarrado ao outro pela bandagem, diz Monica, o corpo vira um boneco sem individualidade, um “coco bobo”.
Ana C., mulher-ícone, criada a partir da foto de uma boneca de mamulengo, é o mote da exposição. A personagem reaparece nas bobinas, bandagens, impressões em borracha e séries fotográficas. No início dos anos 80, Monica pintava tradicionais retratos de família com irônicas intervenções que deixam transparecer traços perversos da vida em família. Nos trabalhos recentes a artista amplia seu campo de observação e muda a estrutura de organização da imagem. Em Ana C., 2002, Monica retrata a personagem usando uma estrutura em ciclos, própria das ladainhas e dos refrões do canto popular. A figura de Ana C., o amarelo da cabeleira contra o preto do fundo e a cor clara da face que é o branco vazado do papel, se repete na própria imagem matriz. A partir do bloco de quatro imagens iguais sobe um arco que irradia linhas. No interior desse arco, os instantâneos da mulher-mamulengo vão se dissolvendo. Sem a cor da cabeleira e com o contorno esmaecido, Ana C. vai deixando de irradiar e de existir.
Monica manipula suas impressões como peças de um quebra-cabeça feito com registros de viagens, estórias incompletas ou letreiros populares de vendas de beira de estrada. O registro fotográfico é manipulado com tecnologia digital. A artista monta estes fragmentos de diversas maneiras, manejando-os como se fossem os bonecos registrados na viagem a Pernambuco, até que eles comecem a formar novos sentidos, a contar outras estórias. Reeditadas e impressas em diversos suportes – bobinas de papel, placas de borracha, rolos de bandagem – as imagens comentam os desdobramentos das formas de dominação econômica sobre o corpo, o sexo e a liberdade de ação.
Apresentadas sem o realismo formal dos seus retratos dos anos 1980, as personagens de Monica formam a outra face do noticiário policial e da vida de todos os habitantes dos grandes aglomerados urbanos. Falam de questões sociais mais ampliadas, tais como a violência contra a mulher e o machismo que se mistura com o crime a as rajadas de balas.
Não há um desfecho para a estória de Ana C., apenas a repetição da própria estória. Cada uma das imagens-estória criadas por Monica, com a economia de seus elementos – poucas palavras, partes de figuras, cores chapadas –, recorta fragmentos de experiências do dia a dia da artista e os reorganiza em uma totalidade, como uma parábola visual.
Fortaleza, março de 2003
Luiza Interlenghi
Texto de apresentação impresso em bobina para a exposição Ana C. na Galeria IBEU Rio de Janeiro 2003
[1] A flexografia é uma técnica de impressão rotativa que usa uma matriz de fotopolímero, aplicada sobre um cilindro para imprimir continuamente em bobinas de papel.
Essas pinturas e essas assemblages de ascendência barroca, proliferantes, excessivas, de Monica Barki, são o resultado de um processo lentamente depurado. Processo realizado por olhos e mãos que aprenderam a ser atentos e pacientes, aprenderam a refrear a ânsia em reter e fabricar o visível e que, por terem aprendido, trafegam sobre solos deliquescentes, engendrando labirintos móveis e caleidoscópicos, pletora de formas e sentidos.
Ânsia em reter o visível porque, assim como as palavras frequentemente brotam como em reação ao silêncio, como um vazio a ser preenchido, o ordinário é o olhar satisfazer-se apenas na flutuação sobre as coisas. Em sua ânsia habitual o olhar não se detém, não examina, não reconhece aventura em colher a minúcia, o detalhe, aquilo que se esconde nas dobras, nas fissuras, nos interstícios ou aquilo que por ser mais discreto, mesmo estando logo na superfície, subtrai-se diante da audácia dos reflexos luminosos, do ímpeto das cores mais quentes que, como os perfumes de certas frutas, elevam-se contagiando o ambiente.
Existe também uma ânsia em reter o visível que se expressa através dos nossos gestos. Nossos gestos, convém não esquecer, são uma resposta ao mundo. Servem para acusar ou aplacar a impaciência da incompreensão na medida em que o que nos rodeia vai invadindo nossos sentidos. Ao primeiro caso pertencem os enumeráveis gestos, dos indagativos aos de interjeição, que pontuam nosso cotidiano, sublinhando nossas manifestações verbais ou substituindo-as quando esbarramos no inefável. Ao segundo pertencem os gestos formalizadores: as imagens nos chegam e para melhor compreendê-las, representamo-las seja através de uma garatuja, seja através da sua plasmação em um material qualquer.
No empenho em reter o visível, olhos e mãos estão conjurados. Além disso, cabe lembrar que além de se empenharem e retê-lo, ambos, juntos, o sonham e, eventualmente, materializam esse sonho, vale dizer, fabricam-no. Embora se refiram a gêneros distintos, pertencem a essa modalidade tanto os ornamentos repetitivos com os quais distraidamente vamos cobrindo os papéis enquanto falamos ao telefone, produtos de uma ociosidade obliquamente produtiva, quanto as ideias que se traduzem em esquemas e protótipos, produtos do cálculo e da geometria.
As pinturas e as assemblages de Monica Barki encampam de um modo peculiar esse universo de questões. Sob títulos como Fruteira do Oriente, Dobras e colares e Bordado com especiarias, comparecem cornucópias de formas e cores que se exaltam em soluções sinuosas, que se enrodilham umas nas outras, emaranham-se em suas texturas e tramas, o que impõe um movimento constante ao olhar do espectador, ainda que no seu passeio ele se tenha pausas aqui e ali, ao sabor daquilo que vai reconhecendo, como as contas, conchas e pérolas, as ramagens e pétalas, os despojos de um brinquedo infantil, as estampas vivas dos tecidos, o ritmo entrecortado das rendas complexas.
O barroco é revisitado por Monica Barki por meio de superfícies que expandem o espaço por obra de torções e engolfamentos mútuos. Ao mesmo tempo essa referência se junta a um conceito moderno de pintura, aparentado com a pintura all over dos expressionistas abstratos do pós-guerra, em que não existe hierarquias de planos, onde a lógica vigente é a do descentramento, que se contrapõe a soluções convencionais do gênero fundo-figura. Nessas obras nosso olhar se vê estimulado a um passeio ininterrupto por campos que, muito embora quadriláteros, são transbordantes e ademais exigem ser percorridos em suas totalidades.
Mais recentes, as assemblages de Monica Barki levam o fabrico do visível a um ponto que as pinturas, pela sua própria natureza, não logram alcançar. O mundo e, no caso, o mundo doméstico, pessoal, da memória materializada em objetos herdados e guardados, é a cornucópia insuspeitada da artista. A casa em que vivemos nos faz lembrar esses trabalhos, vai recebendo ao longo do tempo o impacto das nossas vidas – desejos, frustrações e afazeres comezinhos –, o que lhes transmuta a dureza e a geometria rígida das suas paredes de argamassa em alguma coisa próxima de uma roupagem acolhedora para onde gostamos de regressar quando cessa a flama do dia. Cada casa converte-se em um relicário privado onde se reúne um sem número de objetos que um dia foram desejados, tiveram utilidade consoante a finalidade que presidiu sua existência, mas que por um motivo qualquer – talvez por afeição, posto que até os objetos podem ser alvo das nossas paixões – não seguiram o circuito do descarte e do lixo.
Monica Barki recolhe peles, bordados, lençóis, colchas, lenços, meias, sacolas, bolsinhas, carteiras, cordas, colares e contas, barbantes, novelos, fitas, linhas, cacos de cerâmica e de brinquedos, fragmentos indistintos de plástico, madeira e outras coisas mais, muito mais, coisas que só um olhar cuidadoso é capaz de contabilizar, coisas que a artista, pela engenhosidade de suas mãos, vai organizando, juntando em volumes estampados cujas cores e texturas vão se alterando em ritmo crispado e iridescente, volumes aos quais vêm se unir outros volumes, num jogo de sobreposição e justaposição, à maneira das vísceras de um organismo que desconhecemos mas que tem a ver – certamente que tem! – com a memória, com esse espaço mental e físico onde as coisas vividas despencam de seus tempos e espaços de origem para se misturarem numa dança arrítmica e infinda, num vórtice imenso em cujo centro estamos.
Rio de Janeiro, março de 2000
Agnaldo Farias
Texto de apresentação do catálogo “Colarobjeto” em ocasião da exposição no Paço Imperial (Rio de Janeiro, 2000) e na Galeria Nara Roesler (São Paulo, 2000)
Às vésperas da virada do milênio encontra-se, provisoriamente, arquivada a crença evolutiva de um “tempo flecha”. Não temos mais a ilusão de um futuro progressivamente melhor e nem mesmo a pretensão de saber a face exata do que seria essa melhora.
Em termos de arte há, também, uma certa desaceleração no que toca ao novo e à ruptura como valores máximos. Vivemos em época de um ecletismo cético no qual convivem diversas tendências.
E a História, que poderia ter sido banida do espaço específico das artes, passa a ocupar, ostensivamente, de forma explícita, o interior de alguns trabalhos. Um dos artistas mais fortes da atualidade, Anselm Kiefer, nos pareceria, há poucos anos atrás, irremediavelmente obsoleto com sua reapropriação particular da mitologia alemã, do Talmud, de técnicas de pintura pré-moderna, planos de guerra e manuais nazistas. Hoje, o que nos seduz, ao lado de seu requinte plástico, é o desconforto provocado por sua ousadia e perícia conceitual ao lidar com temas tão delicados e, até então, considerados inconciliáveis.
Dentro desse panorama incerto dois requisitos são fundamentais para um artista contemporâneo: conhecimento das rupturas anteriores e uma linguagem pessoal. É, sobretudo, nessa última perspectiva que proponho um olhar na produção atual de
Monica Barki.
Monica vem desenvolvendo, ao longo dos últimos anos, uma das linguagens mais pessoais da arte contemporânea carioca. Linguagem constituída por um vasto repertório que inclui dados biográficos, condição feminina, cultura judaica, educação burguesa, objetos de seu cotidiano, ironia, cultura pop e referências ao abstracionismo geométrico. Elementos, cores e formas novas aparecem nas diversas fases de seu trabalho, montando vocabulários diversos dentro de uma linguagem que se repete se modificando.
A pintura é, para Monica, algo sem fim e sem limite, o meio através do qual se relaciona com o mundo e nele deixa a sua marca. Sem fim e sem saída como a própria existência; ao mesmo tempo uma tarefa e uma libertação. A sua pintura, cheia de fragmentos, funciona como um quebra-cabeça de imagens e fatos da vida que devem ser contados. A arte está em volta: no detalhe do tapete do quarto, nos desenhos dos filhos, nos tecidos da casa, na cartilha, em sua memória das paisagens externas e internas. Monica Barki não pretende fazer grandes declarações sobre o mundo, mas as suas declarações sobre o seu mundo: uma pintura das pequenas causas que possui forte ligação com a arte das questões específicas dos anos 90.
O fio da sua história, o fio da pintura e o do bordado vão sendo urdidos juntos, como recuperação, diálogo e superação dos elementos de uma educação feminina. Por vezes, Monica organiza os quadros como o trabalho de um bordado, repetindo gestos que, no passado, envolviam, além do prazer, toda uma inculcação de hábitos e disciplina. Não desprovida de uma ironia melancólica, lança mão desses procedimentos como forma de exorcizá-los ou, pelo menos, de vivê-los de outra posição.
Na fase atual a preocupação da pintora se sobrepõe à preocupação biográfica. Nota-se em seus trabalhos uma exacerbação da cor, forma, espaço, texturas e matéria. As paisagens e memórias são mais internas e servem, assim, a um interesse essencialmente pictórico.
As caixas-objetos surgiram em 1995 por conta de sua vontade de experimentar a tridimensionalidade. Nelas os objetos são achados, reapropriados e depois abandonados; as referências biográficas deixam de ser o ponto de chegada, se constituindo em partida para uma abordagem plástica.
Neste sentido, os seus trabalhos não são “literários”. A procura não é de entendimento narrativo, mas da própria arte. Monica não mais está interessada em aquilo que representa, mas no efeito e estrutura da representação. O modo de contar a história é o que importa, mesmo que o espectador não reconheça certos elementos ou não decifre todas as pistas.
Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 1997.
Lauro Cavalcanti
Texto do catálogo para exposição no Instituto Cultural Villa Maurina e na Galeria Anna Maria Niemeiyer Rio de Janeiro 1997
No mundo de hoje, essencialmente icônico, tudo é imagem. Ou pode ser reduzido a imagem. O habitante da grande cidade, após ver na rua o acidente de trânsito, o assalto ou o crime, fica à espera do noticiário televisivo para confirmar o que acabara de presenciar com seus olhos. Só então se convence de que o que vira não era ficção. O filme velado indica o fracasso do picnic do último fim de semana. O turista apressado nada vê. Fotografa. O postal, adquirido à entrada do museu, substitui a contemplação artística. No mundo-mosaico de hoje, essencialmente disperso e descontínuo, o homem vê tudo fragmentariamente.
Circulando pela cidades, indo ao shopping, lendo um jornal ou revista, vendo tevê, ele está sempre diante de pedaços de realidade – de uma realidade em pedaços.
E o artista o que faz nesta sociedade de consumo, massificada, high-tech? De criador de imagens originais passou a ser um manipulador de imagens de segunda ou terceira geração, que ele recolhe no aleatório das revistas, fascículos, comics, tevê, filmes, publicidade, computadores.
Assim, em vez de sair a campo, com seu caderno de desenho, bosquejando “pequenas sensações”, o artista atual prefere percorrer a floresta de ismos da história da arte, os meios de comunicação massiva, o universo da publicidade. E para isso, na verdade, nem precisa mais sair de casa, porque, agora, é o grande mundo, o mundo-lá-de-fora que vem a ele – na forma de imagens.
Uma das formas que o artista encontrou para lidar com esta iconografia fragmentária e dispersa é a colagem. Se por um lado a colagem acentua esta descontinuidade do mundo, seja através da acumulação de imagens tão diversas e conflitantes, seja através da variedade de materiais empregados, ela é, também, um instrumento de sínteses plásticas, de re-leitura e ressignificação do real. Através da colagem, pode-se mostrar, por exemplo, a elegância do ordinário e do banal, a poesia dos pequenos fatos (imagens) do cotidiano etc. Enfim, o artista busca na colagem uma outra continuidade, busca dar um sentido novo às coisas. Porque se com a tesoura ele isola, separa, divide, afasta, com a cola ele junta, reúne, soma, aproxima.
Monica Barki, em sua casa-ateliê de Petrópolis, está cercada pelo verde, por árvores frutíferas, mato, águas, tranquilidade. E sua vista, além do mais, pode se perder nos longes da paisagem serrana, que são um convite à introspecção. No entanto, o que a fascina neste isolamento que a natureza lhe proporciona – natureza que é para ela uma espécie de fundo sensível ou reserva espiritual – é poder exercitar, de modo calmo e tranquilo, seu olhar sobre as coisas e seu cotidiano. Porém, mesmo longe do burburinho da grande cidade, o que ela tem à mão, o que manuseia, lida, contempla – olhar-tato – são imagens: velhas fotos, jornais, revistas, anúncios, embalagens, palavras e frases soltas, reproduções e originais de pintura e desenho etc. O que muda, então, é a escala, o modo como se relaciona com estas imagens, a afetividade de seu olhar feminino. De cada um desses pedacinhos de realidade, procura arrancar um sentido novo e particular, encarando-os como receptáculos da memória, arquivo sensível, como sustentáculo para pequenos lances de poesia e fina ironia, e, também, como cor, forma, texturas.
O processo criador de Monica Barki desenvolve-se em três etapas sequenciais. Primeiro ela recorta imagens-coisas, imagens “abstratas”, que vai guardando dentro de um envelope, mas que caberiam todas, na palma da mão. Espécie de arquivo portátil, de bolso. É seu pequeno-grande mundo. Com este material, elabora, a seguir, pequenos estudos, a colagem propriamente dita, geralmente do tamanho de uma folha de papel ofício. A terceira e última etapa é a tela, que nela é de médio ou grande porte. O que à primeira vista surpreende, pois que Monica lida com miudezas imagéticas, com sensações e sentimentos delicados. Na verdade, o infinitamente grande ou distante e o infinitamente pequeno ou próximo são reversíveis, tanto quanto o dentro e o fora, o avesso e o direito, o público e o intimista, a colagem e a pintura. O grande pode ser percebido de relance, em uma única mirada, mas, com frequência, nos perdemos no pequeno, que pede lentidão contemplativa. Do grandioso podemos nos descartar logo, mas o pequeno exige paciência e demora, o que gera atenção.
Na passagem do estudo para a tela, a dispersão dos materiais, sua aspereza, desaparece. O que temos, então, é outra continuidade – visual. Isto, aliás, já pode ser notado nas fotocópias coloridas que o artista faz de seus estudos. Na colagem é ainda a mão que prevalece, na pintura é o olho. A imagem perde em iconicidade para ser apenas cor, textura, planos abstratos. Inverte-se, assim, o histórico da colagem: do papier-collé chegamos ao tromp-l’oeil, do real chegamos ao seu simulacro.
Este jogo de virtualidade e simulações dá a dimensão lúdica de sua criação plástica. Monica brinca. Brinca com as formas, simula a colagem, incorpora o fundo da tela, o branco, o vazio, inventa paisagens, interiores. Brinca também com ideias e conceitos. Brinca com a própria história da arte. As palavras ou pequenas frases em inglês, francês e hebraico são distribuídas estrategicamente entre as imagens – a palavra puxa a imagem e vice-versa. São encaradas também como ícones. Ou então, elas servem para deslanchar processos mentais e participativos, são o modo sutil e irônico de Monica opinar sobre a vida e a arte. Sobre o universo feminino, por exemplo. A mulher é uma imagem-tema recorrente em sua pintura. São frequentes as imagens de mulheres, bailarinas, manequins, moldes, referências ao design de moda, estamparia, interiores domésticos, nomes femininos. Quando lemos, em suas telas, expressões como les girls, sleeping princess, la femme, cette inconnue podemos estar certos de que elas estão ali intencionalmente: é sua maneira de participar da discussão sobre a condição feminina, hoje.
A pintura de Monica Barki parece ingênua. Mas não é. Como pessoa é delicada, discreta, quase tímida no seu modo de ser. Sua pintura incorpora a garatuja infantil, o rabisco, a mancha, o traço, insinua o inacabado dos croquis. Mas nesse modo de agir há cálculo, premeditação, conhecimento de causa, domínio técnico. Um bom exemplo do modo de agir da artista é The composition. Na ironia do texto em inglês, encontramos uma pequena lição de pintura. Para Monica, a colagem, ou melhor, a sua pintura-que-imita-a-colagem não é um veículo de exteriorizações psicanalíticas, a busca primária de ignições poéticas surrealizantes. É antes de tudo a reafirmação dos valores plásticos da pintura. Ou melhor, é seu modo de, através da colagem, reinventar a pintura.
Frederico Morais
Extraído do catálogo “Pinturas recentes Monica Barki”, em ocasião da exposição na Galeria Nara Roesler, São Paulo, 1994
“(…) quando percebi a situação estanque em que me encontrava na pintura. Ao sentir uma forte necessidade de mudança, optei, enfim, pela litografia (gravura em pedra), como meio de expressão. O hiper-realismo de outrora, as grandes proporções, o impacto visual de meus quadros, foram substituídos por pequenas interferências sutis de origem fotográfica dentro de um espaço reduzido e em preto e branco. A cada pedra litográfica, comecei a experimentar uma granulação mais fina, o que me possibilitava um foco mais preciso nos detalhes. Cada pequeno poro da pedra preenchido passou a desempenhar uma função significativa dentro do conteúdo do todo. Descobri que acrescentando apenas um ou outro detalhe, como também deslocando um elemento de sua posição original, estou transformando inteiramente o sentido de uma situação. Vejo o mundo como um palco, onde nós, os atores, representamos, cada um, determinado papel dentro de um certo cenário. São meus personagens, cada um deles tem um pouco de mim mesma, um pouco de todos nós (…).”
Rio de Janeiro, junho de 1982
Monica Barki
Texto de folder realizado em ocasião da mostra Álbum de Família, Galeria Cesar Aché Rio de Janeiro 1982